quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Melina

O pé tocava o chão liso, extremamente liso, num compasso desnorteado pelo cabide de levar soro, a ser carregado como um amigo desconfortável, uma péssima lembrança. As portas se repetiam em cores ritmadas, trincos abertos, intimidades escancaradas. Eu vi a gorda de verde comendo a bolachinha doce que dão aos doentes. Eu vi a fisioterapeuta utilizando a alegria como murodesilusão. E os seus passos, se confundindo com o chão verde esmeralda liso e fácil de limpar.

Você andava para algum lugar que infundisse a coragem nos seus orgãos.

O número da sua porta era 510. Apenas mais um número, azul, largo, vasto, destrancado. E era preciso caminhar, com as meias apertadas até acima dos joelhos, o soro encoleirado, a certeza de ir para nenhum lugar.

No fim do corredor havia um vitral. Os pedaços de vidro tentavam restituir duas mãos unidas em prece, os amarelos escuros ou mais claros ocultando a cidade muito mais cínica por trás. As unhas da mão cristã pareciam roídas.

Acho que você não reparou nas unhas. Estava preocupado em continuar. Infinitamente. A medida que caminhávamos nesse passo hesitante os enfermeiros e suas mesas móveis abriam caminho, e se eu soltasse frases como se for desmaiar avisa, sorriam, comovidos com a ternura difícil dos hospitais.

Quando chegamos novamente ao fim do corredor, você, corajoso como o homem que lembrava ser fora daqueles corredores circulares, decidiu trespassar a porta grande e mais larga. Como se fosse possível crer que não iria desmaiar, necessitando da ajuda do(s) enfermeiro(s) mais próximos para não abrir os pontos recém feitos.

Domínio repleto, você atravessou as portas com segurança, apesar do vacilante balanço das puídas rodinhas do cabideiro de soro.

Embora as portas fossem azuis, os quartos nus entrevistos eram diferentes. As camas eram menores. O ar parecia um pouco menos rarefeito. E ninguém passava no corredor. Andávamos juntos, lentos, embebidos naquele novo ar branco e puro. Andamos até o final, e voltamos pelo mesmo caminho.

Algumas portas tinham fechaduras diferentes, similares desigualdades, miragens dentro de um mesmo labirinto. E então, algo realmente diferente enquanto você reclamava da pulsão no braço. O quadro. Moldura tridimensional pendurada numa porta azul, quase igual. Era um quadro com objetos em miniaturas, como um quarto, como quadro do quarto do Van Gogh. Viam-se livros ordenados numa estante, brinquedos sob um baú, uma cama, bonita, pequena, feita de madeira. Em cima de uma cadeira de palhinha havia uma boneca meio caída, e no meio do quarto de miniatura, fantasticamente flutuando, um nome - Melina.

Minha mão sofreu do espasmo súbito da curiosidade. Contive-a antes do constrangimento e do erro. Minha mão não abriria aquela porta, muito embora ela certamente estivesse destrancada. O medo a trancava. Comia por dentro a hipótese de que Melina só tivesse aquela pequena miniatura como recordação de como é ter quarto quente, seu. Esse era o ar adstringente.

Pior, muito pior, era imaginar que ela estivesse lá há tempo suficiente para ter um quarto pessoal e íntimo, um quarto com seus afetos infantis. Um quarto, por exemplo, com um quadro emoldurado em miniatura em que seu nome flutuasse, flutuasse sobre todas as coisas.

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

luvas

rapidamente,
você olha meus dedos e desenha esboços.
constrói com tecidos sulcados, brochuras e brocados
as luvas que imagina.

já te adianto que minhas mãos são menos,
ou mais,
da imagem até linda que me faz.

bobagem essa.
deixa minhas mãos livres,
a pele da palma sabe a outras peles.
é firme o tato do contacto,
requer ausência de plano e de pano.

para alcançar o cerne violento
da delicadez.
nua, a mão requer que seja.
para tornar crua
a tez.


quinta-feira, fevereiro 09, 2012

golpe de vento

não sei bem por qual porta você entrou, se foi na hora daquele calor insuportável das 5 da tarde, que eu abri bem as janelas e você estava lá, escancaradamente lá, precisa como um golpe de vento.
eu nem percebi como e você estava no sofá me olhando com olhos grandes, sem falar nada, sem pedir nada, graças. mas sua mão era tão quente. e eu tive que te contar do meu dia, e você falou do seu, e eu senti um sabor de alecrim passear na corrente de ar.
no começo tava tão bonito, você ali, me esperando do trabalho, com seu sorriso sem sorrir, que eu não queria nada mais. aí eu fui inventar de cozinhar para você, e fazer círculos concêntricos nos nós das suas costas, e ficar vendo aquela covinha ali, aquele lugar que os dentes se separavam mais um pouco, o cheiro que ficava no travesseiro quando você acordava, e inusitado como um golpe de vento eu vi que eu queria mais.
e você também queria. e desse cheiro estranho e forte de duas pessoas que convivem com certo grau de amor, foram brotando flores, foram brotando luzes baixas, jazz'es bem compostos numa quinta feira a noite. e de repente viver foi como colocar canela no molho de tomate. e foram brotando alegrias, escondidas no canto da sala, e tava tudo tão amarelo leve que até as formigas apareceram para ver o que tava acontecendo. e foram brotando sorrisos, e foram brotando cidades. e inesperado como um golpe de vento a gente saiu voando pela janela.
até hoje, enquanto flutuamos distantes nas galáxias, olhando os pontinhos minúsculos eternas estrelas, eu me pergunto, como é que foi que você entrou na minha casa.

quarta-feira, fevereiro 08, 2012

bicho

corta uma cebola.
arde, mas vale a pena. sempre.
e uma cebola inteira, sabor forte, sem moleza.
alho também.
nada desse papo chines de separar os intuitos,
aqui é como a vida,
cebola e alho.
já começa a cheirar,
tá sentindo?
quando eu corto alho esfrego bem os dedos
e eles ficam cheirando a flor,
hibisco para não poder mentir.
refoga no oléo,
que usar azeite é que nem declamar poema na hora errada (quase todas),
satura e dá quase um amargor.
oléo que é como a vida.
gorduroso, necessário.
agora é a parte difícil.
presta atenção que eu não vou repetir.
conjunção difícil de firmeza e ternura,
despeje os pedaços de alcatra na panela,
em temperatura alta
deixe que os dois lados se afetem pelo calor.
na carne não existem partes,
existe todo.
você acha que cachaça é mulher ou homem?
eu acho que é mulher.
alecrim é homem.
sal.
é os dois. juntos.
shoyu,
água é avó.
farinha
é combustível.
mexe bem, cheira. dá tempo. relaxa.
deixa o bicho entrar.
deixa.
abre os braços, as pernas,
espera sem esperar.
uma hora vai tar lá,
e não foi você que fez.


segunda-feira, fevereiro 06, 2012

domingo

toda noite profundamente noite profusamente escura.
o céu chama distante, o mar respira,
aqui o ar falta.
seca a carne,
embora viva.
haja licor para expurgar os pequenos vermes das ideias.
as histórias bonitas chegam em roda,
o calor aquece a frente,
a verdade esfria as costas.
tão difícil andar de pés descalços nessa cidade,
a areia é limpa,
o asfalto sujo.
máscara máscara - caveira.
muita gente estupida
mas muita alegria.