Depois do jantar, com o beiços engordurados,
abriu o envelope. As fotos caíram escancaradas. Nada ali era óbvio. O recorte do ombro revelava antigos desenhos. A lembrança de uma nuvem que passou rápido
demais. Uma pinta no nariz desdobrava todo um mapa complexo do seu corpo,
constelações infinitas, estrelas sem nome. Nada ali era
óbvio. Ali não havia o que da mulher sucita sua besta fera. Ali a maldade era
maior. O seu cabelo caindo a direita mexia nos
torrilhões do dentro de dentro. A beleza dela movia sua escuridão mais bem
guardada.
Toda mulher antes de morrer deve ter sido muito boa e muito
má. É importante que tenha cruzado esses caminhos. Todo homem antes de morrer
tem que homenagear precisamente uma dessas mulheres.
O plano se traçou rapidamente em sua cabeça. Riu
pateticamente do piano encostado num canto escuro. Riu da sua ingenuidade, riu
da falta de fibra, da falta de horror que havia naquele instrumento. O som do
piano era muito claro. Imaginou cartas, textos, meramente desenhou frases. Elas
pareciam poucas. As palavras se tornaram opacas.
Ele então passou as mãos nas coxas. Dos joelhos em direção
a barriga. Lentamente. Uma, duas. Três vezes. Ouviu o som do tecido sibilando.
Sentiu o calor aflito do atrito na palma. Trocou o teso das pernas, pelo duro
dos dedos.
Pegou a chave num átimo e partiu.
No número 349 ela já esperava por ele. Esperava vestida,
guardando segredos. Esperava sutil, mansa. Esperava com suas pintas e os mil
nomes ainda a ser dados, conquistados, devorados. Esperava como uma mulher boa,
como uma mulher má, como uma mulher antes de morrer pode e deve esperar alguém.
Ele olhou profundamente para ela. Ele lançou seu olhar
escuridão obscena do desejo, febre. Ele lançou seu olhar calor fluido do amor,
temperatura. Ela recebeu tudo aquilo inteira. Soube se deixar abater sem cair.
Ele começou a beijar ela ali mesmo. Não havia mais nada a ser feito. Essa seria
sua última homenagem. Ele beijou com calma, porém voracidade. Pegou seu corpo
com todas as palmas de todas as mãos, sem
machucar. Ele conheceu a luminosidade estranha do plexo, o labirinto das
costelas. Conheceu a calma furiosa dos cabelos. A delicadeza despudorada dos
lóbulos. Se embrenhou nos dedos da mão. Fez da curva da coxa com a bunda uma
esfinge. Trocou olhares com os joelhos. Percorreu a língua pela coluna, praia
imensa, mar infinito. Sentiu seus dedos, seu corpo, seu eu, agora já sem nome,
batendo água na areia, ritmo, chamando, chamando. Sentiu ela respondendo,
terra, pulsar denso. Imagens vinham de todos os lugares da casa secundar os
gritos, a lua gemia baixinho, o ar pesava suores.
Em algum momento tudo aquilo passou. A mulher viu o homem.
Tocou seus ombros fortes que logo antes a amparavam. Olhou seu pau melancolicamente
alegre. O seu suor na nuca. Ela olhou para aquele homem que pela primeira vez a
transportara para esse antilugar em que estão ou estarão ou já estiveram,
alguma vez, todas as mulheres do mundo. Ela olhou para ele e viu um menino. Ele
já dormia. Imbuido de algum tipo de paz. Ela deu um beijo no seu entreolhos e
fechou os seus próprios. Enquanto dormia sonhou que era um lago.