segunda-feira, julho 30, 2012

alhambra


eu desenhei o seu nome.

o seu nome era um pássaro.

eu desenhei e ele saiu voando.

sexta-feira, julho 27, 2012

tempo

apoie a xícara de chá preto no mármore e espera a tintura difícil da erva invadir os veios da pedra.
todos os dias. espera. deixa o tempo em seu verbo - passar. olha o olho escuro e pálido que te encara da ponta da mesa. olha no fundo dessas olheiras cada vez mais densas. uma hora esse olho negro vai te olhar e você vai sentir algo. vai abrir os botões da blusa e com as mãos sem hesitar tirar o peixe vivo que brota de dentro das costelas.

olha para o olho mais uma vez.
ele ainda te resguarda. olha e tenta entender: a ternura insuspeita de um olho que ri.

terça-feira, julho 24, 2012

obatalá

então ban.
em cima das suas certezas.
e aquele laço luminoso e quente de todos os sentidos atribuídos
se desfazem sem esforço.
então ban.
e dá até raiva.

uma tristeza descansa calma
nem sei onde.
e de repente me vejo novamente
tentando atribuir sentidos.

pensando nos caminhos.
que eles talvez sejam maiores que só o que me toca as mãos.
e que daí talvez dê para compreender
uma loucura assim.

mas não dá para compreender nada.
prefiro me apegar a falta de sentido de todas as coisas
que me deixa ter raiva dessa e outras tragédias.

segunda-feira, julho 23, 2012

agora

se lembra daquela chuva? tinha até granizo, embora não fosse inverno. e parecia que ia quebrar os todos vidros. o vento batia nas molduras frágeis das janelas, a água escorrria para dentro de casa, invadindo silenciosamente, apodrecendo tudo de forma invulgar e vagarosa. se lembra dos trovões? iluminavam o seu rosto insuspeito na escuridão, lampejos de desconsolo. as suas mãos frias. tateando, tentando compreender a violência da chuva que invadia todos os passos. o eco do mar no fundo. brigando. a terra acabando, chacoalhando, reagindo. a terra tinha raiva de você, se lembra? te deixou no escuro, úmida, fria. você nem chorava mais. mesmo quando tudo acabou, sobrou só a umidade infinita do charco. você olhou e achou que aquela merda nunca ia secar.

agora é inverno. não tem o calor modorrento das tardes que tanto fizeram que secaram a água. agora é inverno e o sol toca sem queimar. acarinha leve sua pele. agora é inverno e tudo bem não lembrar da chuva e do sol. agora é inverno e você pode sentar aqui do meu lado e ficar nesse sol morno. fica. descobre o toque delicado desse calor inverso. a luz bonita descendo pela poeira. ouve o mar. ele tá rugindo. agora, e para você. não existe nada além de agora. e agora estamos nesse sol manso. e agora o mar bate. e agora nos olhamos. e agora não precisamos entender. e agora basta estar aqui, e agora.

sexta-feira, julho 20, 2012

braz

cava vorazmente com os dentes presos num pano. aprisiona entre os dedos, ou está aprisionado. entre a areia e a infinita função. desmama com raiva os grãos melancólicos de terra. transforma-os em areia. da sua barba braz nascem os fios delicados de água salgada densa. chuva, quiçá lágrima. cava há tanto tempo. sua unha manchada de ocre se mistura com o sabor ácido da terra. suas rugas recolhem as gotas de chuva, as organiza para que percorram a lateral do seu rosto. cava profundamente. e quando se esgota sente o tempo passando, inefável sob seus pés, como um vagão de metrô, que passa, passa, sempre vazio. talvez seja por amor que suas mãos penetrem eternamente na terra. talvez um eros ancestral. tão velho que é puro esquecimento, pura sabedoria. cava sem saber por que, sem saber por quem. cava como uma criança que insiste castelos de areia. cava sem duvidar do mar. da ferocidade do mar. da sinceridade do mar. sua devoção é patética. suas mãos estão sujas. todos riem. riem dele. ele já não se lembra. não sabe dizer não.não sabe duvidar. ele já não se lembra. ele recorda apenas. todos riem dele. ele chora. e nem sabe por que, por quem.

domingo, julho 08, 2012

eu quero te falar de antes. Antes as paredes tinham os papéis de parede em ordem e ela nao tinha do que reclamar. Eu nunca gostei dos padroes que estampavam aquela casa. Eu lembro da flor de liz bege. Eu lembro dos losangos laranjas se repetindo, se repetindo, se repetindo, extrapolando as paredes. Por dentro tudo estava mais ou menos roto. Colocando a orelha delicadamente podia-se ouvir as gotas passando incessantes, apodrecendo tudo que alcançava no caminho. Nao sei quem decidiu que a água deveria ser tomada como algo benigno. Ela talvez. Ela gostava muito de tomar banhos. No mínimo 3. Ainda nao descobri o que tanto ela queria limpar. Sei que sua pele ficava seca, e quando ela me procurava com as pontas dos dedos ásperos eu me dobrava com angústia.
e Agora. eu vejo o chao, mártir unico da nossa relacao. eu nao consigo enxergar mais nenhuma marca. o fogo comeu tudo. levou embora toda aquela água insalubre. Agora eu estou de pé aqui. E duvido. Duvido com os pés juntos de que qualquer daquelas coisas aconteceram nesse espaço imaginário em cima desse chao. Eu duvido. Nada no mundo secunda essa hipótese. E a memória, afinal, difere muito pouco da imagincao.

sábado, julho 07, 2012

bresson


as vezes as sombras
as curvas, as pessoas.
as vezes tudo parece já ser.


o sol as vezes se encaixa
entre a árvore ali e a outra
sobre o boné do velho que já passa.

as vezes a beleza súbita
configurada num instante
para quase ninguém ver.

sexta-feira, julho 06, 2012

terceira margem do rio

ali onde o vento faz a curva.

sente-se em todos os lugares.
ao mesmo tempo em todos os tempos.
ali
embrenhados cúmplices,
voando no meio do turbilhao,
tudo acontece sem fato.

ali,
todo momento morde,
tudo volta,
o amor rechaça os elementos duros da parede,
perdura,
na madeira, no veludo,
e na pele macia.

nao sei por que ali,
tudo.
mas nos seguramos com os olhos atentos e as maos próximas
encarinhando o instante completo.

domingo, julho 01, 2012

todas as coisas

salto da minha pegada ínfima.
vejo o rastro formado
areia ou neve
nao menosprezo.

abro a boca larga
os dedos se abrem em pleno voo
braços abertos surpreendidos.

tiro uma mordida da lua
sinto o gosto de todas as coisas.
o tempo mais presente é todos os tempos.
o lugar mais universal é aqui,
se esquecendo de mim.

tanto

hoje tanta coisa.
a retina chama outras imagens por cima das que já tem.
hoje tantos lugares
transparentes em cima dos que eu estava.
o deserto caminhando nas pedras secas do vale. as luzes amarelas chamando carnavais de prédios bem antigos. praças, vistas, sensaçoes teimosas agarradas nos cabelos da nuca.

hoje tanto.
e a noite queda-me uma sensaçao de nao estar em lugar algum. a chuva fina rala meus passos na calçada constante. caminho em algum sempre. chego. e entao envelheci. nao me lembro mais por que caminhava. o tempo presente nao se recorda de nada. as costelas estao cansadas, os pés se tocam com frio. a noite é absoluta. senhora. encobre-me e diz que é tarde. que durma. poe as maos grossas em cima dos meus cabelos e diz que ainda é cedo, que esqueça. a noite passa, brinca no meu colo. me lembro de um tempo ontem, de um tempo talvez amanha. ele se torna agora, e durmo mais tranquila. alegria agasalhando a velhice que por ventura apareça.