sábado, abril 27, 2013

lua cheia

noite bem alta, era a lua, pingando palavras no meu ouvido. o dentro aquecia o fora pele ébria passarinho. a rua infinita e nossa. as casas feitas de caquinho de pedra colorida. eu nunca tinha reparado, você disse. eu também não. pensei num silêncio que não era meu. algo gritava ao redor, uma nota só. bemol. e nós atravessando aquele momento como se. a lua só. e você me perguntou. escancarou a pergunta mais branca que a lua. eu quis te dizer que durmo com duas meias e acordo com uma só. eu quis te dizer que meus pés estalam no piso duro de madeira todas as manhãs. eu quis te dizer que gosto de dormir de manhã, o que me deixa com os olhos nublados. você olhava para mim, mas olhava para a rua. era estranho. os carros continuavam passando. não perceberam quando a gente começou a passar. o silêncio escancarava verdades. eu quis te dizer que gosto de cozinhar e comer junto. eu quis te fazer sentir o meu corpo mudando rápido o espaço de um ano, maré alertada por lua. eu quis que você olhasse nos meus olhos. e entendesse. o gosto complexo da tristeza e da inteireza. eu quis te dar minha palheta de cores conquistada no mais dentro da intimidade. pérola, ocre, selva. quando eu vi chegamos. e você não perguntou nada.  enquanto você agarrou minha mão sem intuir o peixe esquivo que nela morava eu percebi que no dentro do silêncio você entendeu algo. que eu nunca poderia ter te explicado.

quarta-feira, abril 24, 2013

plástica

AS flores brancas amassadas do lado da cama. Quem teria extraído até o último cheiro da flor. Estupro da flor. E de manhã acordar com o sol já quente. O corpo velho. Garganta seca. Palavra seca.

(miudezas. é no espaço do entre, das delicadezas, que se escondem as grandes tristezas.)

E quando as lágrimas não chegam. E quando as flores dão asco. E quando o viver apavora. E quando os copos acabam.
É nessa hora que ficamos com as pequenas alegrias.
As cores estridentes das flores de plástico.

segunda-feira, abril 22, 2013

veia aorta

embaixo de todas as coisas tem um mar.
as vezes a imensidão disfarça.
o lustre sozinho em cima da escrivaninha,
o gato,
a melancolia.
coisas que se parecem somente com elas mesmas.

mas então se dispor.
fechar os olhos,
ou abrir.
e ouvir aos poucos,
e cada vez mais forte,
o ir e vir da maré
pulsando
em tudo que há.

quinta-feira, abril 18, 2013

estilhaços de azul

. você dizia de um rosto... . um rosto me dizia. era úmido. o rosto me sorria. me olhava. entre. no vão no ar, olhava descaradamente, e ninguém sabia. seu rosto, você dizia. meu rosto também era úmido. gotejava. coisas como delírio, alegria ou desespero. e as mãos. as mãos se uniram em susto. susto era a primeira e única palavra. outra lingua. a gente falava na teimosia e no medo. a lingua, outra lingua, era o idílio, desejo. o desejo era o unico bom naquilo tudo. e muitas vezes era melhor não falar nada, para não ser mau. pra não ser mau de novo e novamente. ser louco é um jeito de ser mau. com u e não com l. não confunda. você confundia tudo. você também. você confundia mais. ninguém. era tudo estranho e equívoco. era tudo tão mau, tão sem salvação, e uma espécie estranha de amor arrastando tudo. vocês. não existia. nunca existiu. esse era o duro da dor. mas o idilio. o idilio era o mais mau. fingindo fingindo. sorrindo dentes e gozo. o tempo. cravou uma esfinge em cada testa. você dizia de um rosto. um rosto seco. um rosto sério. um rosto me dizia. um rosto parece triste. parece que não sabe mais alegria. alegria. não confunda. umidade com isso. alegria me dizia. é seca. um ano. faz um ano. e todos úmidos. não existem mais. ficciones. rostos umidos guardados onde. no tempo talvez. na memória do que não mais existe. que é ser, transmutar, e carregar as ausências do que já fomos, como coisas que não somos mais.

segunda-feira, abril 15, 2013

lago

suas mãos na minha direção.
energia sutil,
carne densa.
o corpo inteiro zunindo.
acordou,
e disse -
obrigada.
suas mãos nas minhas.
mais lago
que represa.

domingo, abril 14, 2013

ar

uma semana meia e o sol não sai nem que. o café ainda esquenta e tenta acordar. a flor enfeita embora ainda não tenha cheiro. o luar? luar nenhum, a noite chove. mas o ar entra. e o ar sai. toca por dentro com sua mão branca, o dentro das costelas. sopra no pulmão. alcança numa curva todo e todo corpo, imenso neuronio, rede de pensar. em dias como esse, o carnaval clama, chama baixinho do centro da cidade, e o corpo cede na maré. canoa de madeira eira eira.
vai.
mas não esquece de respirar.

sábado, abril 13, 2013

amoras

esse olho clínico que me deixa entrever sem muito esforço o cheiro de esgoto proliferando solto por debaixo dos tampos das mesas dos bares de sempre.
essa chuva rala
que não serve nem para molhar
nem para ficar seco.
essa falta de gosto,
essa gripe,
esse despero silencioso
corroendo na forma de sorrisos
os sonhos de uma idade inteira.
essa bebida
que não serve mais para ir além
senão para empapuçar
e deixar a vista nublada
e o sono inequívoco.
essa sede.
e nenhuma bebida.

é nesse quadro
que eu quis e quero te explicar na importância das pequenas alegrias.

alegrias quase nunca são grandes.
são pequeninas
como uma vela que se apaga ao sinal de menor vento,
como um gesto,
como uma lembrança.

alegrias são anãs e delicadas.
são como amoras.
de um azul bem vivo
que vai embora logo.

sábado, abril 06, 2013

luto

Quando as noites chegam mansas, acompanhando invisíveis o desenho das marés, e o vento leva embora um vivo, eles se preparam. Sete dias e sete noites passam com as mesmas roupas, todo o tempo dentro da casa daquele que partiu. O seu cheiro, o seu resquício, o ar pelo qual acabara de passar, são aspirados até a última gota pelo resto da tribo de Guruka. Por uma semana eles não se lavam. Eles comem juntos, na mesma casa, no mesmo cômodo, todas as refeições. E comungam do mau cheiro da tristeza imensa.
Passados sete dias eles entram no rio, e dizem o derradeiro adeus. 

na garrafa

sinto gotejando
ouço vindo
de onde não posso ver.
sinto o cheiro
grama em dia de chuva.
calor
areia.

sinto o encanto.
vindo lento.
de tão longe
de um certo tempo.

e gosto.
agora e aqui
simples gosto.
não sei para onde
nem de onde.

te olho na curva da estrada.
te espio.
guardo esse segredo na nuca do desejo.
e gosto.
simples gosto.

quinta-feira, abril 04, 2013

assim

andando pela lua vazia,
pedras soltas e outros percalços,
entre o boa noite e o bom dia,
há um riacho
que se chama nostalgia.

os olhos do gato são amarelos,
as flores da noite são invisíveis,
os caminhos nunca são retos.
entre o cheiro e a vertigem
o deserto ainda é mais quieto.

nada chama na voz do grilo,
o arredor em nada altera,
e no entanto tudo muda,
e nova e nua e nossa enfim,
raia a manhã,
mansa pantera.