terça-feira, janeiro 29, 2008

apenas

segurava a xícara com ambas as mãos, amparando a dureza dos olhos no etêreo vapor do chá. chá preto com jasmim. ouvia milton e queria fumar um cigarro. qualquer coisa para se esquecer de como o dia estava feio pra fora daquelas janelas. os dedos inquietos procuravam algum abrigo para a farta ausência de pensamentos. os dedos tamborilando procuravam nóticias nos jornais, maneiras de matar o tédio. nada. teria que mais uma vez esperar pelo livre arbítrio daquele fenômeno diário, esvanescer. teria que sentir antes os músculos relaxados e o pensamento longe. então os minutos passarão com fome e só se perceberá mais tarde. por enquanto deveria terminar o chá e ouvir o disco. por enquanto.

sábado, janeiro 26, 2008

solidão

então foi um não mais que de repente
e a mais densa paixão amansara-se em tristeza.
fraca, sem dedos,
uma tristeza calma, de já não machucar mais ninguém.
a vontade de fazer-se espuma
transformou-se em olhar o mar.
o mar que indo e vindo num não mais parar,
acalmava os ímpetos.
a alma estendeu-se na praia,
os dedos se incrustaram na areia,
os olhos se fizeram de pedra.
era um só por inteiro.
e por inteiro só
era.

tristeza'

eu tinha uma dor.
eu acordei, eu dormi,
e dentro de mim uma dor que me acompanhava.
como uma cantiga antiga,
como o abraço da saudade.
às vezes parecia querer me abandonar,
mas eu lhe implorava que não,
pois me acostumara com o latejar discreto e constante das dores difíceis.
se tudo passasse
então voltaria a me conformar com a exatidão das coisas,
e a vida fecharia suas asas de morte.
os amigos e as lembranças,
todos os dias seriam o bastante,
se eu tivesse uma dor.
se eu tivesse uma dor...

quinta-feira, janeiro 24, 2008

tristeza

é a tristeza que me toma pelos braços
é ela que diz-me do eterno emudecer diante das contrariedades.
com que direito?
e com que braços velados, por trás de quais véus?
passará carmim nos lábios, quando já bem perto,
chamar meu nome?

óculos escuros

olhe para a direita,
e por trás de seus ombros
as estrelas hão de cair no chão.
olhe para cima,
e a ferocidade da terra se abrirá sob seus pés
olhe para o chão,
e alguém repousará a mão entre seus olhos.
saiba entender o mesmo
(imenso) mistério
encravado na carne.
denso respeito calado,
latente morte entre nossos pés,
o mar,
a vida,
quando nos olhamos nos olhos.

poeira leve

de todas as palavras sussurradas em uma noite de ebriedade,
corpos fusos,
intenções outras,
nem tudo é da mesma límpida matéria do que só se pensa,
e sequer se sente.
tínhamos-nos da mesma maneira do não ter
que sempre fomos
quando ausentes em nós.
tua mão no meu rosto
repetindo a palavra de ordem,
não nos permitia ser mais do que:
eu, o meu medo
você, o seu.
conhecia de cor os amanhãs que nos separariam,
e que tornavam a noite uma malfeita miragem.
por entre minhas mãos que te procuravam atenciosamente
já teu corpo sumia
por entre meus braços que te apertavam violentamente
gritavas sua ausência de mim nesse mesmo corpo.
sempre tomadas por dois opostos que num distraído impasse
se juntam.
os mesmos que juntos não podem estar.
no fim não existíamos,
não podíamos,
não éramos.
no fim dormimos nosso sono pesado.

quarta-feira, janeiro 23, 2008

tristeza

andava pela rua escura com a cabeça baixa embora assim se perdesse em sua promessa, a de olhar para as estrelas. logo as árvores, dejetos arqueológicos, como mulheres assustadas pelas mãos hábeis do vento. andava cada passo como o primeiro e procurava em sua imensidão algo exato. então fazia noite, e não era ao certo dentro ou fora dela, chovia mas não era água, eram as escatologias soltas durante o dia. tinha um medo grave repousado sobre os olhos, as pernas fracas pela vontade de chorar, os olhos azedos pela fome. as mãos tentavam desenhar futuros projetos no ar. continuava o caminho, vinha o céu, vinha o mar. chegara em casa.

sábado, janeiro 19, 2008

uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

"acima de todas as coisas. não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. temos amontoado coisas e seguranças por não termos um ao outro. não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. temos disfarçado com falso amor nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. falar no que realmente importa é considerado uma gafe. não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. não temos sidos puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelos menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. temos chamado de fraqueza a nossa candura. temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. e a tudo isso consideramos a vitória de cada dia."

clarice.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

outro

do não saber nunca o nada
(pois não se sabe)
inventam-se mil minutos desperdiçados.
a mim basta-me não saber nada,
quando vejo
que não saber já basta.

segunda-feira, janeiro 07, 2008

comunicação

sonharam.
o vento entrou pela janela
eu soube.

sucinto

página a página.
eu te esperava em cada esquina
sem saber,
era sem esperar
que eu estava lá.
entendi os olhos mais velhos que o corpo.
seus olhos perfuravam-me até o medo.
ele chegara até o oco,
e me olhava com a pedra.
sorria-me e além disso a barba no pescoço
atraia o meu foco,
se eu ainda estivesse distraída.
distraia-me com suas palavras
e me olhava.
perfurou-me
inundou-me.
era sem esperar,
que eu estava lá.

sábado, janeiro 05, 2008

preparação para um haikai

não tinha café,
não podia fumar.
decidiu estar com saudades,
por hábito,
ou ainda,
por tédio.
olhou sem muita pressa os retratos de um passado recente.
a dor de estômago pedia atenção
(as fotos não).
passava uma por uma,
como quem olha os pássaros na rua,
e não os nomeia:
de tutu, jeremias ou eleonora.

a chamavam do outro lado da rua,
até iria,
depois a solidão seria mais macia,
e mais pura.
voltaria pro seu quarto,
sentiria cada músculo,
o corpo de um adulto.
as roupas estiradas no chão
teriam algum conforto guardado.
o vento traria alguma doença,
e na pouca morte um corpo que treme,
vivo,
certamente.

saberia traçar planos rudes,
e guardar segredos covardes.

porém, tudo ruiria,
bastasse um aroma
suspenso no ar.