quarta-feira, março 30, 2011

Je suis folle

o riso da maldade desce tão seco quanto esse litro. o cinzeiro cheio sugando o ar, a única luz caramelo, não sei como tudo acabou assim. aqui, os labirintos na minha cabeça parecem muito naturais. estou sendo má, porque cansei de ser louca. raspei as unhas no cal até chegar na carne. vi o sangue aflorar como nascem as plantas. e entendi.
agora sou má da paz de ser louca. mulher, na calma de ser eu.
é preciso muita calma para ser mulher. é preciso enfim muita paz para ser louca.

domingo, março 27, 2011

julia

por trás dos seus olhos maquinavam os ossos da memória. entre os passos duros no piso de madeira, ouço seus planos. Ela me olha dentro dos olhos e não lembra meu nome. sorri como se me conhecesse. ela sente que deve ter o dever de me conhecer.
Ela finge. sua boca aberta expele generalidades como uma vela que consome o pavio. seus olhos mudos, inertes. através deles vejo a intensa atividade cerebral. Ali, à minha procura. revive cores e cheiros. procura jogando no chão do quarto todos os pápeis inúteis das gavetas, cada festa um cômodo esbranquecido, entre contatos tão efêmeros como esses e bebidas dos gostos mais variados.
sua boca fruta à mostra, aberta, depois de ter caído voluntariamente no chão. sua boca mamão, quanta bobagem caroços esparramados. extiro-me na relva ainda úmida e quase divirto-me preguiça de seu esforço vão. sei que vale a pena que se lembre de pedro, no outono, com seu cachecol vermelho quase vinho. que se lembre de marcinha, de suas tatuagens e quantas besteiras. do dia em que no concerto era quase carnaval e para ela era silencioso como uma manhã cinza de chás cidreira, vitrola e alguma espécie de paz.
Embora ela não olhe no olho de nenhuma dessas salas-casas ela olha para mim Embora ela não olhe para eu. da cozinha gritam alto seu nome. ela ainda nada diz e eu ainda quase nada sei. exceto que ela pensa que me engana e parte satisfeita. Também estou satisfeita. não importa-me que não saiba um nome que sequer é meu. me importa que me empreste seus olhos mudos e suas maquinações, para que eu também possa falar besteiras, bobagens e outras poesias.

saturno

tudo no agora se conhece.
é esse senhor muito sisudo que sabe as coisas que desconhecemos.
hoje ele deixou essa casa carregando um faisão.
não sorria. senti em seus olhos que suas expectativas eram outras.
em dois anos ele retornará,
talvez me leve embora.
talvez ele me devore inteira,
um mandrião revolvido em aspargos e molho bechamel.

ou encho seu bucho de pedra
ou correspondo
a cada milímetro neurótico, terraqueo, funesto.

sexta-feira, março 25, 2011

voar

eu sei que eu te assusto empoleirada nesse alto de mim. pássaro enorme negro, ou ancião nu. eu sei que extraio seiva do ar que fica entre nós, e gorjeio se assum gorjeia: perdão.
vocês dois geléia de damasco. porta vermelha, retrato. gosto de gim, gosto de vento, gosto de mato.
vocês dois planície caverna.
saí vendo as nuvens passarem entre os abertos braços. saí música. saí pássaro.

quinta-feira, março 24, 2011

estória

Era tudo mentira. Eu te disse e você sorriu molinha como se já soubesse, como se soubesse todas as vezes que eu menti pra você e passasse as mãos na minha cabeça querida-menina-maluca. Finalmente, eu pensei. Alguém que entendesse, que nas veredas tortas das histórias que eu inventava, não havia traição, não havia a vileza tradicional das mentiras, mas sim a intenção carinhosa de te mostrar um mundo mais azul. Ela ria pra mim, enquanto eu me perdia nesses labirintos. Eu falava muito, e era muito jovem. E ela ria como se eu fosse uma criança me sujando com as tintas vermelha e amarela.
Mesmo quando a gente dormia junto ela tinha esse jeito. Passava os dedos entre meus cabelos suados enquanto eu inventava prazer onde antes só tinha dois corpos iguais, espelho transcendental.
Eu não sei bem onde ela me achou, ou eu achei ela. Ela quase nunca falava nada, e ria, ria. Ria das molecagens que eu sabia a supor feliz. Escondendo sempre minha também velhice, nos olhando atenta, como o tempo que passa no ritmo contínuo e exato de uma cadeira de balanço.

quarta-feira, março 16, 2011

lobinho-guará

abre suas asas lobinho. disse para a menina doente com olheiras e fraquezas por baixo dos olhos.
abre suas asas lobinho, deixa esse catarro pra lá e vamos voar.
chá não dá pé, pé é que dá. vamo que vamo,
esconder as cidades sob o peso dessa omoplata.
eu te dou uma pena nova, de pavão ou tiê sangue.
abre suas asas lobinho, você não precisa nem sair dessa cama.

terça-feira, março 15, 2011

ódio

eu tenho ódio às vezes. coisa do coração descarrilhar e ir batendo carro-velho-em-cada-buraco-da-estrada. a terra vermelha é seca e sobe, cega os olhos, nubla, e deixa na boca esse gosto seco por sangue. minhas mãos se fecham e coçam, coçam. embora você não esteja aqui te vejo passando-sombra-na-minha-calçada. você não é nem um pouco flor, e cheira a caatinga de homem bruto. se for pra te regar é com cachaça. se for pra te carregar é embora. te ódio, ódio, odeio. embora ame. mas é coisa passageira, de dirigir e às vezes perder o freio.

sexta-feira, março 11, 2011

o pé

Cala a boca.
Você fica aí se olhando entre os cacos de vidro que sobraram no chão da sua casa e ainda me diz que tem medo de se cortar.

purgatório

Eram anjos azuis. Eles dançavam zonzos com os olhos tortos, embasados um dentro do outro. Eram anjos tortos. Suas mãos escorriam entre os copos de água forte. Seus pés escorriam. O suor escorria por seus corpos inteiros, limpando, limpando. A cada volta ali corpos branco e moreno rodando contra a escuridão de um chão sem luz algo se deixava. Voltava a volta, a mãe se ia, volta ia volta, ia-se o bairro, volta que dá, o pudor, o sapato. Ali atração e repulsão - ciranda. O braço dele ia e puxava de volta, o olhar fissurava, a perna dele recortando, os cabelos também dançando. Ali imersão de suas juventudes, nada mais haveria de haver, exceto os dois, girando, gostando, cada vez mais. Era por isso possível se entregar, o instante era largo, o imediato cabia exato (dentro do eterno).

A música é que levava os dois. As vezes morria, e eles se entreolhavam assustados, como se também fossem morrer. E então recomeçava, inflando as mesmas cores, os mesmos ares. O corpo deles era forte, e aguentava resistentemente a noite. Lá fora havia mar. Lá fora havia lua, havia maré. A areia também chamava a água salgada, fazendo deles parte de tudo. O rosto deles quase encostava, o pulso pedia distância, a barba roçava, o braço caia. Ia e vinha, com cada vez mais vontade, os corpos fortes, a água, o suor, a praia, o vento sul.

Já não tinha mais ninguém na pista.

O vazio em volta deles se difundindo como os desertos que nunca param de crescer. De fora na varanda, os outros olhavam. Fingiam conversar. Perdidos entre copos de vinho, canapés e banalidades. Eles fingiam não olhar. Fingiam não enxergar dois homens lindos, fingiam não se incomodar. Era belo e perfurava seus olhos, cortava em pedaço suas invejas. Eles dançavam, e eram lindos. Como anjos tortos. Como anjos azuis.

E essa imagem se repetia a cada gole. No copo, azulado, os beijos eram acrescidos de gemidos suaves. As ondas iam e sempre voltavam, sem ritmo, mas com intensidade. Aos poucos, a tentativa de fixar o olhar, o tornava mais embaçado ainda. E, pela tontura, pelo enlevo, pela primeira vez na vida, tomou coragem: agarrou a borboleta que tremulava as asas ao seu redor e foi beijando, devagar, cada pedacinho do corpo. Desde o peito até os pés.

Enquanto isso, um sol malemolente hesitava em aparecer no universo. Por ali, estrelas, astros e um imenso buraco negro acompanhavam os anjos azuis, os casulos se romperam e assim o tempo foi passando sem nada haver, apenas ser.



ana e sílvia c.

quinta-feira, março 10, 2011

re-sentir

eu queria chorar um pouco.
por tudo o que foi
por tudo o que não foi.
eu queria chorar do tamanho.

eu queria conseguir chorar,
me unir em água salgada
com a grandeza de todas as mulheres (e homens também).

eu queria chorar-ser.
chorar-sentir.
chorar-lembrar.

eu queria poder limpar,
toda essa poeira que me embasa os olhos.

eu quero abrir um sorriso limpo
como céu depois de tempestade.

quarta-feira, março 09, 2011

noite

Eu estou deitada na cama à espera.
Sinto suas mãos se escorrendo pelo meu corpo, em nada parecidas com as metáforas sem osso dos poetas, que falam em água e fogo.
Suas mãos são de carne, sólidas e macias.
Elas sabem por onde ir, e vão, com ferocidade e segurança.
Sinto minhas costas se arqueando à mera sugestão de um arrepio,
e sua língua roxa entrando por cada curva e esconderijo do meu corpo.
Nos descobrimos em tato e gosto, envoltos nessa dança anfíbia.
Se suas mãos rudes quase machucam os momentos em que minha pele é mais delicada, sua umidade quase me cura, amolecendo-me numa zonzeira doce, para o começo do meio do fim - a rija entrada do seu corpo no meu.

carna

sair daqui,
sair do corpo.
entrar numa escuridão de confetes,
tato e canção.

e então voltar,
e não encontrar (o tufão do carnaval).

é meu bem,
está tudo no mesmo lugar.