sábado, dezembro 29, 2007

tejo

quando existia no começo, existia mal e mal. voltava da escola sem nunca pensar estar pensando e dispunha toda a areia dos pés no lixo da entrada. olhava para as outras crianças com os velhos olhos arregalados esperando qualquer coisa possível. olhava-as esperando alguma coisa como sempre haveria de esperar. se alguém lhe tocasse o ombro e lhe contasse uma história teria a liberdade de torna-se um pouco daquilo e nunca mais lembrar de nada. se alguém a enredasse em sua atormentada ingenuidade choraria de pavor e juraria a vingança de quando fosse forte e entendesse o mundo.
passaram-se os anos e ainda lhe tocavam o ombro e a enganavam. ninguém a tinha muito em conta, nem olhava fundo nos olhos assustados. todos os dias voltava para casa, e já sabendo andar sem encher os pés de areia, tirava as tardes para pensar.
pensava em mundos outros, tomava posse de seus sonhos, e quando menos esperava, no décimo segundo andar de um prédio qualquer, tornava-se fielmente a menina dos olhos.
agora quando as mãos tentavam marcar-lhe os membros, esquivava-se como se nunca se acostumasse. era apenas sua, pois era de todos os mundos noturnos inventados desde a infância, que eram, na verdade, as mil e uma formas que ela inventara de ser.
os dias acabavam e as manhãs nunca cansavam de nascer. quando se cansava podia sempre deitar-se na pequena parte de chão que lhe cabia e olhar as poucas estrelas da cidade. olhava a imensidão do céu e algo lhe dizia que valhia a pena. a solidão dos olhares assustados, perpetuada pelos anos todos, e olhava o céu e se sentia olhada. e o vento batia e lhe contava as histórias que os homens esqueceram de contar. e pensava no mar para quando se sentisse muito nua, e ele pudesse a vestir.
pisava nas folhas porque elas estavam secas e estalavam do gozo de não estarem mais vivas. dos homens só esperava alguma coisa dos olhos, que sentia vivos, enquanto calados. então a noite chegava de mansinho, e ela dormia.

apesar-de

o som acabou,
para que alguém decida cantar.
choveu,
porque alguém quis se molhar.
o elevador parou,
mas você precisava mesmo pensar.
o dinheiro acabou,
e você parou de fumar.
viver é viver,
sempre apesar-de.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

mentira

quando você diz o meu nome em vão eu procuro desvencilhar-me dos véus do discurso para encontrar o seu rosto fujo das palavras que não dizem nada acho tudo um desperdício e procuro no seu rosto os seus olhos que não sabem mentir quando olho no seu olho eu sei que a vida é isso e não outra coisa e que as palavras são inúteis perante a água e o fogo mas você não diz o meu nome e é melhor que seja assim eu não procuraria os seus olhos nem os encontraria no seu rosto porque hoje eles aprenderam a mentir.

laticínio

suores odores calafrios
dedos frios,
esvai-se o sangue.
no espelho os lábios pálidos,
no corpo oco,
esvai-se a fome.
sentir-se mais uma
outra vez
como a morte.
não sentir saudades,
não querer,
e perder,
esvai-se o nome.

segunda-feira, dezembro 24, 2007

bêbado e tarado

Charles Bukowski

"sim sim

quando deus criou amor ele não ajudou muito
quando deus criou cachorros ele não ajudou cachorros
quando deus criou plantas ele não fez nada de mais
quando deus criou ódio nós ganhamos uma utilidade
quando deus criou a mim ele me criou
quando deus criou o macaco ele estava dormindo
quando deus criou a girafa ele tinha bebido
quando deus criou narcóticos ele estava louco
e quando ele criou o suicídio ele estava miserável

quando ele criou você deitada na cama ele sabia o que ele estava fazendo
ele estava bêbado e louco e ele criou montanhas e o mar e o fogo ao mesmo tempo

ele fez alguns erros mas quando ele criou você deitada na cama
ele gozou em todo seu abençoado universo."

bom humor

dormir pouco virando os olhos inconstante corpo profuso em doença física; caminhar passos de sempre ruas conhecidas vazias sem sol; passar algum tempo com a família encher o ouvido de confusão irmão primo pai de novo irmão. não esperar mais nada se é filme ou enche de melodia. pois seguir o dia como seguem todos no rosto só sorriso.

corpo amanhecido,
pôr do sol urbano,
anoitecendo de bar em bar.

sábado, dezembro 22, 2007

formol

a sala está escura,
o prédio está vazio.
nenhum som,
a não ser as folhas secas a tilintar o vento.
nenhuma vontade,
a não ser a de evitar o medo.

companhia dos passos ocos
no chão de cimento.
invado o estar sincero
das coisas desta sala.
vivas longe destes olhos,
imóveis diante da porta aberta.

são orgãos e vísceras,
de matéria carcomida,
embaladas noite adentro
pelo formol e sua sombra.
esperam a morte,
suspensas,
em um tempo úmido,
e sem valor.

tocam-me o bumbo
insurdecedor,
do rufar dentro do peito.
pois já não há espera que crie acalanto,
e nem poro que resista a outro beijo.

sem vida alguma,
jaz o coração suspenso.
e não é formol, nem espera,
o líquido que o congela.
é apenas o que resta,
de anos e anos de quimera.
escorrendo pelas beiradas,
a aguardente solidão.

equívoco

e no início a noite não passava do constante esforço de manter-se em pé, com os olhos lúcidos, e um sorriso no rosto. pediam-me como oculta vontade o humor, e eu despejava sob suas cabeças uma porção de histórias absurdas, embora factuais, para que pudessem transferir o diário desgosto da vida para episódios pouco eloquentes (já que ainda não lhes contara o segredo da insone amargura do café amargo).
nenhuma bebida, nenhum cigarro, nenhum carinho oculto por trás das esquinas. então entendia que a noite deveria ser encarada de frente, sem medo. para tanto, deram-me o riso como única defesa, e para quando não aguentasse mais, o ombro dos mais amigos para que pudesse enconder o rosto. porém, deveria acima de tudo persistir nos impulsos, e acreditar que dormir é sempre a última saída.

eis que a vida transborda das beiradas mal comedidas da vida, e que em ambiente tão infecundo, nasce um sentimento sem nome, travestido nos últimos dias pelo nome da saudade. enche-me o peito vazio desse denso emudecer, e mesmo que o saiba o nome de erro, é impossível esvazia-lo pelo tempo.
na noite proclamada, procuro as saudades, que recusa-me os olhos. e então é a primeira vez que me toca o peito algo que não via a tempos. toca-me e repousa as mãos, os dedos delicados, como o tecido da morte, por cima das veias saltadas e mal contidas. é a primeira vez na noite, e cansa-me tanto o sorriso, que nem sequer previno o ato.
pois o tempo segue sem medo, e sem medo também o inesperado ocorre. continuo a falar como se por trás do laconismo viesse a morte. sinto-me nua perante o bar que gira em voltas absortas dentro de um pensamento, e volto a me vestir, desesperadamente, com as palavras que não cesso de vomitar sobre outros ouvidos. os pressinto com o fundo de mim, e sinto infinito o negro gotejar percorrendo o meu corpo.
passam instantes. sempre instantes e as máscaras caiem. o cansaço invade a têmpora, caio de joelhos perante todo e qualquer esforço. o sorriso transforma-se em mudez, e a dor em consolo.
a mão, que antes delicada, amparava o músculo cardíaco no escuro do dentro, passa a asperamente o contorcer, como se o sangue fosse suco possível de infeliz resignação. o coração freme a cada aperto de mãos fortes, e sem resistência, cede à tristeza e seu estandarte.
o nada, antes previsto, devolve à palavra o poder do dizer mal, ou bem. maldição consumida em verbo, a lua amarela postada no ar que dizia aos incautos - mais cuidado. e bem a lua que da dor sabe, repetindo o não adiantar do cuidado, da precaução, ou dos pés calmos. pois quando o passo é largo, olha-se para o céu, e eis-se deslocado, novamente, na solidão de um erro.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

no próximo instante

cada vez menos.

no dia depois de hoje

nada.

reprise

o oco dos seus passos,
o eco da sua voz,
a sombra da saudade.

quinta-feira, dezembro 20, 2007

so nice

espere pedir uma xicara desse chá que tonifica a memória,
faz bem pros olhos, e para a alma.
chega com esse cigarro mais pra lá,
para de sorrir pra parede,
olha fundo nos meus olhos.

eu te engasgo com o meu olhar,
mas sei que você só quer se perder.
a cada esquina sem encontrar as palavras certas
- não encontrarás.

try

abriu
os olhos
esperando
um mundo
que se moveria
a cada vez
que as pálpebras
se fechassem.

ao contrário,
para além
do tempo
restava
apenas
o
sono.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

gibraltar

o mundo criado é o mundo mentido quando ainda se é muito jovem.
enquanto por aqui chove quase todos os dias, e as plantas vão vencendo a dureza da pedra com a umidade da vida, penso em um tu que certamente não é outro que o próprio.
quando o vento bate nesses altos muros e ainda se vê o mar, a solidão sibila os caminhos tortos que levam às cidades, e os pássaros negros voam em outras direções. então, és tu que me faz companhia, presença opaca por trás do vapor do chá, pressinto os teus olhos enquanto leio os livros que me trouxeram até aqui.
e no entanto estou aqui e te escrevo. pois diz que não estás. que não és. esse tu inventando quando erámos jovens. diz que há outro lugar, em que os carros passam com fome de esquecimento. e que os mortos são sempre mortos por inteiro.
diz em tuas cartas que sente a mesma falta, mas não vês, a falta como os buracos negros criados por presenças que não podem ser substituídas por coisa alguma, sequer ar. não vê os meus olhos por trás das janelas, à espreita. nem os meus vícios nos personagens dos romances.
não sabe-me, nem sequer pressente. inventa outros ares, e com eles engana minha ausência.

domingo, dezembro 16, 2007

waltz

era um como quando, uma vez que a vontade já coçava o corpo todo em se mexer. a rua era muito mais suja e muito boa ainda pra ser. o sol iluminava a podridão daquilo tudo que no escuro nos acolhia. por medo. todos por medo. nós, os leitões acolhidos da chuva, nos abraçando em suor alheio e charfundando em toda espécie de água-benta-nossa-santa-cachaça-benzida. sentiámos tristeza e dançavamos solitários. tocava uma valsa e dançavamos. os olhos secos virados para o lado de dentro, sem espera ou deleite algum. as mãos como uvas passas tocando umas às outras. os ternos bem passados e as mulheres frígidas. copos e copos de alguma bebida desconhecida. o sol, o sal, nenhum gosto a mais.

e as ondas

dilatava a cada hora desgastada em verdades e mentiras na vontade de ficar um pouco mais. despia-me desse orgulho tépido, para que as noites de fato me vestissem com suas cores. não havia muito mais no que confiar. os dias passando, estandarte dos óbitos passados e presentes. esperava não sei com que fome que tudo se desdobrasse em outro estar menos sóbrio, e menos escuro. enquanto isso doia, e nunca pararia de doer, por trás de cada vértebra. de cada espera que teimava em brotar pelos dias. e que morria todas as noites. como semente para as manhãs que nascem. e essas são as únicas que não cansam de viver.

contagios

minha boca está seca,
como se ainda
a vida não passasse das mesmas tentativas frustradas
de sair de debaixo das nuvens mais escuras.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

imaginação

eis que desligaria a luz do mundo
com as mesmas mãos afoitas que invadiriam
o seu estar consigo. do susto provocado
te reestabeleceria do pânico com os braços
bem apertados. eis que nus,
em minutos perdidos, estaríamos vestidas de escuro,
bem no centro de tal tempo suspenso.

então o sol voltariam a brilhar,
os minutos a fugir,
e nada passaria de um sonho,
como sempre o foi.

libertango

por mim
te levava a todo lugar,
e transformava a solidão
no estandarte da tua ausência.
por mim
eu deixava a coerência de herança,
perdia todos os anseios pra crueldade,
e passava todos os dias,
te seguindo pelas ruas.
por mim
o nada seria tudo
e eu, vagabundo,
era só os olhos pro seu escuro.

domingo, dezembro 09, 2007

acalantaria

acorde dissonante,
meu toque no seu sono.
perco as mãos para a vontade,
e engulo todo medo.

o dia morreu,
a noite acabou,
e ela ainda dorme.

brisa

é num sopro que eu te sinto,
por trás da nuca,
quando todo resto há de bastar .

não vou me virar,
você sabe que não é preciso,
pois sabe todo o meu amor,
vivo no sorriso que não vês,
embora o pressinta,
como todas as coisas entre nós.

sorrir

eu tinha a pele que sempre tive como as marcas vão e vem num dia de sol bem feito. me alegrava com as pequenas coisas, bastava que sorrisse pra que o dia desdobrasse em outras memórias antigas. já não tinha fome, agonia não tinha, era toda feita desses vestidos rodados inventados pra se gozar a vida. pois era se submetendo por todos os dias a tais felicidades de momento que em cada cabelo ao vento te imaginava cantando. fazia parte uma vez uma toalha vermelha e branca com bolos e frutas. uma bicicleta de menino bem bem pobre com boina. tudo fazia parte e sendo-me como acabava de ser e vendo-te os olhos cheios de água, éramos aquela imensidão de tonalidades crespas, de ríspidas e bondosas emoções, tornadas poço de alguma prova em volta de todo aquele ar.

terça-feira, dezembro 04, 2007

ópio

todos os dias,
todas madrugadas,
mostram-me um mesmo caminho.

é que é preciso sempre dar boa noite à morte,
dizer que nos vemos outro dia,
que já é tarde,
e que hoje fico com a vida.

nos braços

a madrugada invade cada janela da casa até que não reste dúvida alguma da noite absoluta. o tempo, apesar do martelar dos ponteiros, diz-me com sua voz de vento que me espera o quanto for preciso. tateio com minhas mãos no escuro, e não te procuro. tampouco te acho. como se sua voz fosse consolo, a invento na falta de qualquer outra coisa, e não bem te vejo, já tu não me bastas.

sonos

a cabeça dói como se ordenasse o pensamento.
o corpo procura abrigo na obtenção de seus falsos desejos.
e a alma em pleno silêncio,
espera calmamente sua vez.

taquigrafia

vôo

como
voam
teus
pés
olhos
mãos
como
são
sou

como
és.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

palatho

rapsódia criada entre quatro paredes. as chamas crivadas toda noite no escuro. sobreposições do breu.
as transparências do vício,
e as vicissitudes do amor.

o sal torna a existência mais dura,
e o amargo faz tudo caber na devida dor.

gírus

comparcerar o talco usado na toillete diária das bonecas de porcelana, e as lâmpadas .
a vida como se não houvesse meio de vive-la.
os dias como atos indecisos de uma peça por acabar.

e o acaso mordisca os meus pés.

domingo, dezembro 02, 2007

(in)gentil

nenhuma palavra me merece.
o silêncio imerso da solidão engole minhas palavras.
dessa solidão para dentro, só resta existir para fora.
os olhos nas coisas. os sons do mundo.
quando as ausências passam dos contornos,
o silêncio contamina os dias.

sábado, dezembro 01, 2007

solidão

muita coragem
para se abandonar à distração como uma ordem.
dançam os nomes e as coisas,
nos círculos de fogo e de aço.
por entre as palavras de pedra,
eu prefiro olhar para as estrelas.