terça-feira, agosto 31, 2010

sonho


Os homens todos estavam inquietos. olhavam apreensivos para os lados. Fundo, uns nos olhos dos seguintes. O escuro de seus olhos os fazia femininos, fortes do modo de quem conhece um segredo. Eram anciões em corpos jovens, o que agravava a sensação de que algo ia mal. Um deles segurou no meu braço firmemente, deixando marcas roxas no meu punho. Seu olhar era cinza. como a praia e o céu. Ele me explicou que participaria de um mito.
A tartaruga imensa desceria esse fim de tarde da montanha: sua barriga era de fogo e seu casco de fumaça. Eu deveria ir para o mar, não tão fundo que me afogasse, não tão raso que me queimasse em sua barriga.
Deitei-me no mar como devia e, como todos, olhei para a terra. O tempo seco estalava sem trovões. Repentinamente, a enorme tartaruga começou a descer a montanha. Seu corpo ocupava toda a terra, e seu passo era avassalador. Em segundos ela cobrira a distância de meses de caminhada, e nos lambia as cabeças. Ela sorria. Nós cuidadosamente amparávamos frágeis nas mãos duas crianças, a morte e a vida. Estavamos plácidos e úmidos. Silenciosos de viver um mistério.

segunda-feira, agosto 30, 2010

eros

É primavera viva entre seus dedos
Intactos
polvos sem tentáculos.
Flores densas
plantas carnívoras.

Sob a minha superfície
lisa,
lago plácido.
Eis jardim
descortinado por seu toque:
rosa-quente,
poema escancarado.

sábado, agosto 28, 2010

suave

enquanto do lado de lá é chuva
ali dói sem precisar.

quarta-feira, agosto 25, 2010

ar

unha suja.
calo no pé e na mão.
instrumento
e olho no olho.

funda a fome.
pouco medo no mato,
grande
na cidade.

esguia como capim,
lascívia.
sorrateira,
escorregadia.

fora daqui
tudo é momento.
delicado pássaro
machucado,
aninhado entre os dedos.

embora aqui
levanto da cadeira do medo,
estendo as mãos para você
e espero que o mesmo pássaro,
embora em segredo,
possa voar.

domingo, agosto 22, 2010

ciência

o sol ilude a noite que há em todo caminho.
intermitente é a luz.
a escuridão é sempre.

antes e depois do dia tem a noite,
antes e depois da vida a morte.

eu sinto a minha pele queimando no sol.
a ilusão é empírica,
vivo.

sábado, agosto 21, 2010

mim e eu, tributo egocêntrico a marilda, que tanto me desensinou na vida

quando eu era bem pequena
uma senhora desajeitada e feia
me ensinou porção de coisas.
disse que dentro de mim não cabia eu,
que enquanto um se ensimesmava
sujeito e submisso,
o outro sempre agia,
não dando tempo pra poesia.
era eu quem sentia
eu quem chutava
eu quem corria.
dentro de mim lentamente iam se acumulando
as coisas cheias de poeira,
já que era sempre em mim que tudo cabia.
era em mim que pensavam
para mim que olhavam
sentiam,
cantavam.
mim era esse objeto,
mulher dejeto
que se quisesse reclamar do quadro
tinha que pedir a eu,
que fizesse algo.

desabafo amidalite

hoje de manhã o frio e a garganta machucada me assaltaram. roubaram toda energia, o breu de dentro dos músculos. vim pra casa cedo e fiquei olhando a janela. as mil janelinhas claras. e quantas pessoas com o gosto do novo, um encantamento todo certo, de nunca ter pousado sobre essa bancada. estou triste. antecipo na boca o gosto do álcool que eu não bebi. o violão que não toquei. a coisa que não aprendi. o mundo tão grande rodando aí fora. numa velocidade estupenda. e parece tão parado.

quinta-feira, agosto 19, 2010

11 de outubro de 2008

castelo de cartas

Coloco gentilmente a terapia e a estrutura familiar próximas, para que num equilíbrio impossível possam sustentar a produtividade diária. Ao lado faço o mesmo com o acordar cedo e com o afeto dos outros, para que assim possa gostar mais de mim. Tomo cuidado para separar as cartas alcoolismo e loucura do baralho, deixando de sustentar uma certa liberdade da qual só ouvimos falar. Sem querer pego culpa de classe e com ela dever, que amparam o castelo todo. De resto, seguro todas as cartas com os braços, esperando cheia de angústia o dia em que um sopro prolongado o fará ruir.

quarta-feira, agosto 18, 2010

domingo, agosto 15, 2010

doses pequenas

Ela entrou na cozinha ansiosa. Mal disfarçando o crime que ansiosamente cometeria. Sentou na mesa que ele acabara de deixar vazia. Olhou atenta. Marcas de café. Passou os dedos pelos círculos e círculos de úlcera e responsabilidades desorganizadas. Um pouco de açuçar derramado. Prognosticou - Era um fraco, e precisava do subterfúgio do doce para se ver com o amargor. Nenhuma louça a lavar, só a mesa suja - Ele não ligava pro supérfluo, ilusão de dever. Não lhe valia nada ter uma mesa sem nódoas. Na geladeira resquícios arqueológicos de compras não habituais, e um cheiro estranho - Autonomia delicada. Desejo de se fundir ao vento.
Calculou os prós e os poréns
e constatou delicada
Nux vomica para os excessos do medo,
phosphori acidum para alimentos ou bebidas azedos,
para quando tivesse ciúmes demais hyoscianus
e arnica
para os esforços exagerados.

sábado, agosto 14, 2010

a toureira

A sala era enorme. E tudo inverso. Quase vazio todo o espaço
povoado, preenchido, saturado, transbordado de ausência.
O único som vinha do aparelho improvisado,
lá fora só a noite gritava o silêncio.
O flamenco fazia o corpo todo dela se encrispar,
se desfazer em volutas, enleios.
Os olhos cravados em mim,
desenhando labirintos.
Ela endureceu as costas
e eu me senti em perigo.
Ela se aproximou olhando no duro dos olhos
e falou
você sabe como o toureiro domina o touro?
Eu balbuciei a minha ignorância,
como homem e como mulher.
Então ela desfez a rigidez das costelas
em movimentos delicados,
com as mãos, os quadris,
os olhos, cabelos.
Algo naquilo era conhecido.
correspondia
àquilo que eu, incauta
pensava ser dança.
Dessa vez, entretanto,
a mulher não queria prender entre os dedos
o possível touro.
mas sim matar a besta,
para poder enfim
deitar com o homem.

quarta-feira, agosto 11, 2010

madona

imagens garfo e faca azul claro. na mesa a carne está crua. e nos braços. fígado de boi tem seu sono embalado. no seu parto difícil do plástico. é pela vaca que você chora. lágrimas de sangue plástico. nenhum fogo tirará essa dor. ou cozinhará esse desentendimento. na cozinha a luz de metileno ilumina suas desilusões e o feto morto que tem nos braços.

segunda-feira, agosto 09, 2010

metástase

Os dentes estão na boca. Brancos. Amarelos. Pretos. Estão para que mordam. Para que sintam o gosto acre da tinta vermelha abundante nos dedos e no rosto. Não é o mesmo gosto do sangue. A cabeça está aí para que isso se saiba. O gosto da tinta vermelha diz ao corpo da proximidade da morte, e envenena o corpo lentamente.
Se olhe no espelho do banheiro. E se alimente de tinta, vermelha ou preta. Aos poucos a pele vira plástico, e a emoção dizem que vira arte. Se aproxime assim, devagar, da morte. Como quem pede para dançar uma linda mulher, de nome desconhecido por todos.
O gosto é pior do que o do gin, mas o funcionamento é mais preciso.
Com um estilete escreva na própria pele seus melhores poemas.
Deixa brotar vasto o sangue, sempre menos seu que do mundo.
Deixa a tinta virar sangue,
para que o sangue também possa ser tinta.

domingo, agosto 08, 2010

azul

numa quinta feira eu a ensinei a escrever segredos com limão. ela ainda não sabia os nomes das coisas, dessa forma ela podia sentir as palavras com o corpo, entender o silêncio delas. esse dia ela aprendeu revelar, sincera, desvelar. e riu da mudança.
foi quando ela perguntou sobre o amor que decidiu também me ensinar. então era como o azul dentro do azulejo que era idéia?
e eu não pude mentir:
era.

sono

abre os olhos. deixa a luz inundar os olhos. como uma torrente que destrói e lava. abre os olhos. deixa a luz-líquido-branco te tirar dos maus sonhos. deixa ela percorrer o seu corpo. acordar lentamente as orelhas. sentir descendo pelo esôfago, atingindo em cheio a boca do estômago.
deixa ela acordar a úlcera. as pernas machucadas. a garganta.
estica o braço e alcança a água.
ela reacende os poros que a luz não pode.

o corpo mumificado em sonho acorda na luz e na água.

sábado, agosto 07, 2010

triste recôncavo

recompor os cacos dessa tristeza vítrea
e não conseguir a sentir
é como olhar para uma mulher feia.

quinta-feira, agosto 05, 2010

como não dar certo como um casal
















lição 1.
durepoxi.

O durepoxi é composto por duas massas distintas, que vem separadas na caixa. Distintas em cor, humor, natureza. Para que se produza o amálgama que poderá tomar diferentes formas é necessário que se abdique das personalidades de cada massa para as transformar, atráves do toque e do calor constante, em uma única massa cinza e modelável.
Entretanto, quando o interesse em a modelar cessa, e o toque e o calor a deixam, a massa endurece na forma em que estava, seja ela qual for.
Se tal "escultura" cair no chão, restarão pedaços dispersos nos quais não poderão ser reconhecidos traços das duas massas do ínicio, e nem tampouco da forma final.

quarta-feira, agosto 04, 2010

casa 8

reza a lenda. nada reza. se rezasse aqui nessa casa não entrava. esse relicário aí na entrada é só pra afastar o santo, que tem medo de imagem. essa luz amarela só ilumina o vazio da queda. quantos homens e quantas mulheres ajoelhados nesse chão que você pisa não quedaram. se você conseguisse enxergar na escuridão dessa luz amarela ia ver as marcas: vômito, náusea, sangue, gozo, pus. você ia ver e algo dentro dessa sua escuridão de luz amarela ia se pungir. de nojo ou tesão. ou os dois juntos. você com esses seus olhos de menina. olhos de mulher dentro dos olhos de menina dentro dos olhos de menino dentro dos olhos de ancião dentro dos olhos de menina. você não me engana. eu conheço o seu nojo e o seu tesão. sei de cor o seu pior. já vi na pele branquinha de tantas meninas como você. caídas nesse chão. não pedindo por mais nada. não pedindo por perdão. não pedindo por água. talvez por um pau. ou um dedo. uma língua. um corte rente no macio das pernas. eu vi homens velhos também. que vieram aprumados. desgostosos e descrentes. eles também caíram. e perderam o medo da minha cara alaranjada e eufórica. cara de cavalo da madrugada. eles todos sentiram o gosto acre dessa bebida. sentiram a dor e o prazer dessas mordidas de bicho da terra. se sentiram tão perto da morte, e do prazer lento e moroso e escuro da morte, se sentiram tão perto da cor da vida, marrom fezes, casca de ferida, coagulo, coisa vencida, que nunca voltaram. eu nunca mais chamei eles. eles abraçaram a própria escuridão e sairam lívidos e leves. eu vi nos seus olhos o fundo do desejo. eu ouvi a voz firme do avesso do amor. eu senti com meus pés quando você entrou o rumor da terra ordenando a sua presença. foi por isso que eu te chamei.

domingo, agosto 01, 2010

ébrio breu

A noite cai
densa e amarela.
Quente, se esparramando entre meus dedos.

Olho a noite no vão da mão.
Não a reconheço.
Semblante andrógino
de sono e desejo.

Plástica noite,
úmida.
A terra pulsa sobre os pés,
me suga.
Estranhos carnavais.

Com meus dedos faço desenhos.
É entre eles que te vejo.
Corpo pálido da noite.
Olhos fundos-escuros-furtivos,
da noite.

Dentro de mim assim ecoa.
É longe o som que faz.
Agarro-me a noção de ver,
e tudo escapa.

Resta no meio dessa escuridão,
retrato ébrio da retina.
Olhos entre os dedos.
Dois bichos escondidos no fundo do rosto.

Na noite a lua clara,
faz da luz escuridão.