quarta-feira, outubro 30, 2013

água

aqui nessa casa nova, nesse corpo.
aqui nessas paredes brancas,
nesse teto,
nesse chão.
as novidades são ouvir o som da lona retesando contra a parede,
a poeira toda que ainda não tirei,
os sons dos outros,
e os meus.

já gosto de várias coisas.
das duas prateleirinhas que inventei,
dos quadros colocados,
dos florais.

faltam as flores.
deixei as plantas na outra casa.
falta as que mais gostei,
do gengibre que cresceu sozinho a partir de si mesmo
e virou um matão.
do manjericão floresta,
do hortelã que renasceu.
da arruda que afasta,
da salsinha que esbanja,
do morango que nunca nasceu,
da alface escondida,
do oregano fresquinho,
da espada corajosa,
do cidreira nunca tomado,
da melissa murchita,
da camomila anfitriã,
da cabolinha meio metida,
da sálvia melindrosa,
da abobrinha morrida,
do pimentão árvore-quase,
da palmeira sementeira,
da begônia que foi presente.

dessas plantas que criei, junto e separado,
da pouca alma que fui dando,
e que a lu deu também,
das gotinhas,
viradas em floresta da mais águada.
sempre que me faltam as palavras,
me falam o que há de restar,
processo, afeto, crescimento, tempo, praga, água, sede.

algo que sempre acaba, para outro algo começar.


sexta-feira, outubro 11, 2013

tango n. 6

A calma de casa o acalentava. O modo como os móveis se revestiam de silêncio. O copo em cima da mesa. Não sairia dali até que o tirasse. A poeira se acumulando, primeiro nas quinas, depois nos discos, nos livros, na mesa. Dominando a todos lentamente, como apenas uma mulher faria. Denunciando o tempo, a morosidade do tempo, a letalidade do tempo.
Pensava banalidades como essa, olhando para a marca escura da poeira no seu indicador, quando sentiu o primeiro vestígio da saudades.
Esse estágio se assemelha ao gim. Cheiro de perfume, promessa, azia. Se você estiver atento pode até ouvir o chacoalhar discreto do gelo batendo no copo.
Lembrou dela e logo em seguida se deu conta de que não ligava. De que não era dela que sentia falta. Aquele última ela, com seus gritos, suas burrices, sua traduções equivocadas de tudo o que ocorria. Dela não. Sentia falta da segunda pessoa da conjugação.
Tu.
Era de tu que Elias sentia falta. 
Estava farto do eu. O eu e seus problemas, ordenados por grau, gênero e parentesco. Os grandes problemas, os traumas, ver seus pais trepando sem amor, e se lembrar, descobrir aos 32 anos que seu nariz é torto, que você Elias, não sabia até os 32 anos que era um homem de nariz torto. Os pequenos problemas, o café, que como um ditador anão demanda sete minutos do seu tempo, e às vezes fica forte demais, ou fraco demais, e se você se distrai com qualquer coisa, outros sete minutos de qualquer alegria como um pássaro pequeno, uma alegria pequena, que pousa no beiral da janela, e você se deixa levar por suas penas, pelo seu toque delicado no azulejo, e de repente o café está frio e a vida está um pouco pior.
Também não suportava mais os elas e eles. Os eles e elas da rua. Os eles e elas do trabalho. Os elas e eles do restaurante, da rua, do supermercado. Eles, com suas camisas passadas. Quem passará suas camisas? Ou eles mesmos passam? Ou tem alguém que os ama com o amor devoto das camisas passadas, ou eles mesmo se amam tanto a ponto de terem esse exímio grau de concentração, determinação e limpeza. Elas. Com seus cheiros. Seus cabelos furta cor. Por que todas as mulheres da rua passam com seus cabelos chapados? Seus cabelos anestesiados, sem as marcas rudimentares de uma vida qualquer vivida com prazer e dor.
Entre outras pessoas verbais mais estranhas ainda ele ansiava pelo tu. Procura-o naquele tarde de sol esquecido entre os discos de Marília Medalha, tango e Caymmi. Ansiou, com o menino que vivia dentro de si, ter um tu para cantar sombreando entre a nuca "tu me acostumbrastes". Para mostrar escondida entre as pregas da mão a tão esperada primeira pitanga. Para rir de seu ventre, esconder-se de suas unhas, chegar no último derradeiro delírio bem perto do lóbulo de suas orelhas.
A poeira o entregara a um tempo de bocejo e solidão. O telefone guinchando o retirava.
Era Joana. Chamava para o show do amigo da amiga dela. Ele ia. Sabia que ia. Algo nele já sabia o que dizer,  o que fazer, e dizia. Combinava com ela o horário, o lugar. Algo nele previa, e imaginava detalhes práticos. Ele ouvia sua própria voz falar, sentia o fluxo constante e pequeno das tomadas de providência. A voz elétrica no telefone, até se transformar em silêncio. Na sala quase vazia ele não reconhecia. Retumbava os últimos ecos de sua voz como uma ficção distante, com a qual não se misturava. O rosto de Joana perpassava sua mente. O seu próprio rosto. Não se reconhecia. Nem lembrava mais o som, o gosto do seu próprio nome. Apenas o silêncio. Enquanto olhava atentamente a marca de poeira no seu indicador. 


quarta-feira, outubro 09, 2013

des equilibrio

eu sinto cheiro da sua dor acossando, bufando, farejando a minha presença com fome.
você sabe quando eu chego
quando eu estou cheia de amor
quando eu estou vazia.
você sabe e fareja meu silêncio
como um cachorro faminto
cínico com sua própria fome.
você sabe manobrar entre os dedos
os títeres trocados das noites vazias.
você sabe contar nos dedos.
você saber cuidar,
ou fingir,
você sabe fazer amor,
ou ódio.
você sabe tanto
e é tanto o que não sabe.