sábado, novembro 27, 2010

como

Era assim como o que, ou como quem.
Como se
(na maioria das vezes),
ela tivesse um bigode espesso,
atrás do qual pudesse se esconder.
Como quem estivesse bêbada,
como se fosse poeta,
como tal literatura.

Entretanto,
o rosto dela era frio,
como se não houvesse bigode,
seu gosto era pálido,
como se não houvesse conhaque,
não havia poesia,
como se não houvesse literatura.

Eu te devo no mínimo essa verdade:
tirando os como's
sobrava quase nada.


quarta-feira, novembro 17, 2010

frutoprojeto

poderia ser do seu temperamento colérico. da cor rubra da pele - que dá a impressão de queimar quem a toque. da voz de baixo ecoando por tudo que é sólido nessa casa vazia.
poderia ser por qualquer banalidade dessas
a razão da sua mão ser tão cheia de veias.

mas é engano ser banal assim.
sua mão quase explode de tanto sangue
porque você não muda de idéia.
porque a cidade te ordena que ordene,
e você obedece
em direitas e escancaradas esquerdas.
é assim que tem vivido,
com a mão sempre em punho,
iluminando no fundo da retina apenas projetos.

é por isso que hoje parto.
para aprender a perder a direção.
tornar o plano concluso,
estático movimento do corpo que volta a si,
contemplando a tudo imenso imerso.

é por isso que o deixo só entre os copos de vidro,
para que você não tema mais que eles se quebrem.

é por isso que o deixo só entre tantos caminhos,
para que você se perca sozinho.

é por isso que o deixo só, nu, e talvez desiludido,
para que talvez quando eu volte,
você possa me enxergar pela primeira vez.

essa noite

Essa noite acordei pensando em você.
Eram duas da manhã,
ou meia noite,
ou talvez já tivesse amanhecido.
Acordei com sua imagem colada nos meus olhos,
como antes a escuridão das pálpebras.
Eu nunca tinha te visto assim, na madrugada,
com esse rosto pálido.
Nunca tinha te visto em silêncio.

No meio da escuridão fiquei grata,
pela verdade do afeto ser outra que a dos fatos.

sábado, novembro 13, 2010

a tartaruga

A tartaruga é o ser mais antigo que existe na região de Guruka. Eles a cultuam devido a seu mito ancestral, e o modo como ele se perpetua através de seu símbolo contínuo. Eles dizem que Deus é um camarada esperto, pois inventou os símbolos para guiar os bichos nesse caminho sem fim. A tartaruga, segundo contam, surgiu quando a terra era toda água, e toda fogo. Seu casco permitia que ela ficasse entre esses dois humores tão distintos. E o pouco ar que restava lhe bastava. Entretanto, através dos milhares de anos que foram passando, duas coisas aconteceram: o marejar contínuo do fogo e da água em seu casco lapidaram 24 formas hexagonais, que desenhavam um caminho circular, que ia do fogo à água (tais formas foram as primeiras letras, que embora não se pudessem formar palavras com elas, podia se entender o mundo, pois elas eram símbolos, mas também eram a coisa em si); de tanto perpetuar-se por esse espaço insalúbre, a tartaruga começou a modificar seu meio, tornando próximos o fogo e a água, gerando seus descendentes, a terra e o ar. Foi assim que foram criadas as instâncias que os gregos conhecem como Gaia e Urano, e foi assim que foi criada a palavra, que depois derivou duas de suas formas, o silêncio e a fala. A natureza no seu estado bruto, e a maioria dos seus animais, se utilizam da fala como silêncio (que é o dizer-se sendo, metáfora e realidade do mundo inventado no casco da tartaruga). Já os homens, que são como as crianças do mundo, utilizam a palavra como fala, necessitando dos códigos da comunicação para alcançar-se como ser.

nublou

metáfora porca, e exata. essa nuvem espessa cobrindo o sol como ter que adivinhar o que há de mais denso e quente.

quinta-feira, novembro 11, 2010

cfa

me mastigava um pouco olhar para os outros e imaginá-los tão certos. falando concisos, analisando eloqüentes e específicos as direitas e as esquerdas.
quando eles usam esse tom encorpado eu me arregalo toda nesse dentro de mim,
criança acreditando que se foi falado é fato, sentindo o mundo diminuir ou aumentar embaixo dos pés.
nesses dias de cinza cálido perco esse chão diversas vezes.
então eu olho para o lado e vejo sorrisos,
ou pior, indiferenças.
como se todo mundo dividisse um segredo menos eu,
que é algo assim:
a vida é isso.
eu fico procurando ela (a vida) entre as dobras da mão,
neurótica.
procurando nos mesmos lugares
nunca acho,
já sem esperança de achar.

é nesses dias de cinza cálido e solidão difusa e opaca que eu leio caio fernando abreu.
sinto que se ele também não entendeu nada,
talvez não seja tão ruim assim.

quarta-feira, novembro 10, 2010

poeira

não sabia muito onde te por.
como um móvel cheio de poeira que a gente encontrasse.
Agora sei.
já que não existe nem futuro,
nem passado,
te coloco no presente.

zen

Você me disse enquanto gastávamos as solas:
nós somos a cidade.
Fiquei sem ar por um instante,
esperando desiludida
que minhas emoções não corressem em bueiros.

domingo, novembro 07, 2010

constelação

se a cidade cimenta a terra em cima da pedra,
a hera infesta os rios que correm nos esgotos.
o preto e o branco,
a falta de gosto, de tato, de pranto,
sempre perdem para as cores saturadas de um dia bem quente.
noites de verão ou primavera
cheias de cores e cheiros,
corpos soltos no ar,
frescor
e mistério.

o espanto dessa alegria.
tinge meu corpo
bagunça o cabelo
muda meu rosto.

carro-boi

amanhecer essa coisa frouxa.
luz do sol luzindo as costas dessas varanda,
limpando com esponja algo desse ontem roto.
é pra frente que todo mundo anda
é pra frente que todo mundo olha.
homens, mulheres, idosos, crianças,
todos servindo uma mesma emoção furta-cor.

quarta-feira, novembro 03, 2010

agreste

rachada a parede agreste, terra solta, várzea de água escorrendo ligeira por entre as escoriações. a carne dessa casa de memória e tato. secura escura, se água espessa. há voz, ecoa por entre as paredes. nua, metálica. portas se perdem por entre espelhos. a voz não possui dono, nenhum rosto vaga. há o cheiro denso da terra, e tudo é labirinto. se entrevejo sorriso por entre essas espécies de flor sem madeira é desilusão próxima, prenhe nos passos sempre, balé dos equívocos. o cheiro forte, o gosto. o chão daquela cidade nessa casa é parede, tudo quanto é sabor na boca arde. e embota os sonhos com uma branquidão leitosa. nessa casa não existe você. nessa casa não há eu. quem há de haver se perde nessa impessoalidade, a luz acesa se ilumina é escuridão.

terça-feira, novembro 02, 2010

estampa

ela caminha com seus sapatinhos doces.
lilás, vermelho, bolinhas.
ela anda com seus sapatinhos e sorri para mim com o cinismo de quem tem calos.
ela fuma fazendo barulho e olha para mim,
como se quisesse saber algo.
como quem quer ser olhada.
ela tem óculos escuros nos olhos,
e mãos bonitas.
ela é como essa cidade.
muita vontade
e pouca coragem.