A calma de casa o acalentava. O modo
como os móveis se revestiam de silêncio. O copo em cima da mesa. Não sairia
dali até que o tirasse. A poeira se acumulando, primeiro nas quinas, depois nos
discos, nos livros, na mesa. Dominando a todos lentamente, como apenas uma
mulher faria. Denunciando o tempo, a morosidade do tempo, a letalidade do
tempo.
Pensava banalidades como essa,
olhando para a marca escura da poeira no seu indicador, quando sentiu o
primeiro vestígio da saudades.
Esse estágio se assemelha ao gim.
Cheiro de perfume, promessa, azia. Se você estiver atento pode até ouvir o
chacoalhar discreto do gelo batendo no copo.
Lembrou dela e logo em seguida se deu
conta de que não ligava. De que não era dela que sentia falta. Aquele última
ela, com seus gritos, suas burrices, sua traduções equivocadas de tudo o que
ocorria. Dela não. Sentia falta da segunda pessoa da conjugação.
Tu.
Era de tu que Elias sentia falta.
Estava farto do eu. O eu e seus problemas, ordenados por grau, gênero e
parentesco. Os grandes problemas, os traumas, ver seus pais trepando sem amor,
e se lembrar, descobrir aos 32 anos que seu nariz é torto, que você Elias, não
sabia até os 32 anos que era um homem de nariz torto. Os pequenos problemas, o
café, que como um ditador anão demanda sete minutos do seu tempo, e às vezes
fica forte demais, ou fraco demais, e se você se distrai com qualquer coisa,
outros sete minutos de qualquer alegria como um pássaro pequeno, uma alegria
pequena, que pousa no beiral da janela, e você se deixa levar por suas penas,
pelo seu toque delicado no azulejo, e de repente o café está frio e a vida está
um pouco pior.
Também não suportava mais os elas e
eles. Os eles e elas da rua. Os eles e elas do trabalho. Os elas e eles do
restaurante, da rua, do supermercado. Eles, com suas camisas passadas. Quem
passará suas camisas? Ou eles mesmos passam? Ou tem alguém que os ama com o
amor devoto das camisas passadas, ou eles mesmo se amam tanto a ponto de terem
esse exímio grau de concentração, determinação e limpeza. Elas. Com seus
cheiros. Seus cabelos furta cor. Por que todas as mulheres da rua passam com
seus cabelos chapados? Seus cabelos anestesiados, sem as marcas
rudimentares de uma vida qualquer vivida com prazer e dor.
Entre outras pessoas verbais mais
estranhas ainda ele ansiava pelo tu. Procura-o naquele tarde de sol esquecido
entre os discos de Marília Medalha, tango e Caymmi. Ansiou, com o menino que
vivia dentro de si, ter um tu para cantar sombreando entre a nuca "tu me
acostumbrastes". Para mostrar escondida entre as pregas da mão a tão
esperada primeira pitanga. Para rir de seu ventre, esconder-se de suas unhas,
chegar no último derradeiro delírio bem perto do lóbulo de suas orelhas.
A poeira o entregara a um tempo de
bocejo e solidão. O telefone guinchando o retirava.
Era Joana. Chamava para o show do
amigo da amiga dela. Ele ia. Sabia que ia. Algo nele já sabia o que
dizer, o que fazer, e dizia. Combinava com ela o horário, o lugar. Algo
nele previa, e imaginava detalhes práticos. Ele ouvia sua própria voz falar,
sentia o fluxo constante e pequeno das tomadas de providência. A voz elétrica
no telefone, até se transformar em silêncio. Na sala quase vazia ele não
reconhecia. Retumbava os últimos ecos de sua voz como uma ficção distante, com
a qual não se misturava. O rosto de Joana perpassava sua mente. O seu próprio
rosto. Não se reconhecia. Nem lembrava mais o som, o gosto do seu próprio nome.
Apenas o silêncio. Enquanto olhava atentamente a marca de poeira no seu
indicador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário