domingo, setembro 26, 2010

exercício

O homem nu sonha na cama. Todos os homens que o precederam eram nus e sonharam inumeráveis sonhos. Ele sonha estático o improvável sonho que lhe coube, e não a todos os homens do passado, do futuro, ou, muito pior, do presente infinito de homens, mulheres, meninas, velhos, plantas todos nus sonhando os sonhos que lhes couberam. Esse homem, que não serei vulgar a ponto de nominar, sonhava que era outro homem. Ou então, ainda mais surpreendente, sonhava ser ele mesmo um homem que não era, talvez um menino reinando numa antiga fazenda de café - como dita o sonho, talvez um homem que sonhasse o mesmo sonho exato que lhe cabia naquele momento.
Dentro de um, ou infinitos, círculos de sonhos, algum homem sonhava que era um menino. Que andava na fazenda. Que a fazenda era de café. E que haviam negros dançando e cantando em volta de uma fogueira de luz vermelha. Os negros bradavam: olhe nos olhos do demônio e veja se ele te devora. O menino, ou o homem, olhava então para a máscara do demônio, e via apenas a máscara, para além das órbitas vazias apenas a máscara - materialização de quem sabe que a máscara não vela, mas sim revela; como um sonho que não tivesse por quem ser sonhado.
Aquele que olha a máscara, que já não ousarei saber se era menino, homem, se era aquele que me contou esse conto, se era você ou se era eu, se assustou perante a ausência do rosto, a ausência dos olhos, e subitamente pensou "talvez o demônio seja eu". Aquele que olha encarou profundamente a máscara, e com ela desenhou em passos círculos em volta da fogueira. A fogueira vermelha chilintava a umidade das madeiras, denunciando a imensa improbabilidade daquele momento. Não havia carne a se emprestar para esse instante, tudo ocorria no plano disperso onde ocorrem os sonhos, as memórias e os textos, não havia unidade a se retornar, senão o homem nu distante - em outra cidade, em outros tempos.
O menino do sonho, entretanto, continuava a dançar com a máscara, como o medo, o outro e o espelho. A máscara sem rosto, e o menino sem nome. Ele então começou a se distanciar, dando passos mais espassados - queria alcançar a porta. Antes de deixar para sempre o sonho, porém, alguma espécie de intuição mobilizou o menino, que deu um último olhar de soslaio para a máscara. Ele não viu o vazio recheando sem pudores os buracos dos olhos. Ele não viu. Por trás da máscara dois olhos reais o observavam.

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