sábado, abril 02, 2011

I e II

O dia estava tão silencioso. Como se soubesse. Os pássaros negros sobre-voando sua cabeça. Um ou outro latido. Embora pensasse muito, seus pés seguindo pelas ruínas davam a impressão de certeza e calma. Houvesse bolsos ele procuraria subterfúgios, mensagens involuntárias de apoio do futuro ou do passado.
No fim da longa plataforma haviam quatro passagens de pedra bruta. Os vãos escavados na carne mineral pareciam escuros, profundos, inescrutáveis. Aos pés da primeira havia o começo de uma escada espiral. Ele engoliu o medo sem água, testou seu próprio peso na terra, e começou a subir. Embora a escada se embrenhasse na escuridão, as paredes estavam iluminadas com palavras soltas, zohar, radateh, kulehyin. Palavras cheias de h's, músicas, poemas únicos e originários. A cada letra abraçada por outra ele passava os dedos na pedra e sentia uma espécie de calor lhe subir as vértebras - uma por uma.
Não haveria, ainda, de entender porque, mas sorria pleno de algo, ao se deparar com o próprio deserto de palavras que não significavam nada além do próprio som: limitados universos infinitos. Ele continuava ascendendo os degraus, rumo a luz mais forte, breu. Não sentia os pés. Não sentia os olhos. Não sentia os dedos. Não saberia entender nada além da história contada em si, subindo as escadas, ele também, limitado universo infinito.
Ao chegar no platô superior viu uma luz distante cintilando seu nome. Caminhou passos de madeira. Piscou faíscas. Seu tato de seda.
O sol lá fora cegava. O solo ruína. Em frente a ele, novamente as quatro passagens. A voz vermelha de terra ecoou um apelo em lembrança, olhando fundo nos seus olhos "Agora que você já sabe, vai ter que se acostumar". Entre lições mal compreendidas e uma dor antiga nas juntas se esqueceu do que viera fazer. Mais por disciplina do que por consciência, caminhou em direção a segunda passagem.
Lá dentro estava tudo iluminado. Como se o jogo promovido quisesse se dizer justo, cartas na mesa, ética branda. Dessa vez, ao invés da crueza ancestral, via metais brilhando, azulejos por todas as paredes, terra cota, mostarda. Havia homens inertes sentados em cima de tambores, flores brancas caídas trazidas pelo mar. O cheiro dos peixes entre golpes de vento.
No final do amplo corredor estava ela. Morena e cheia de pulseiras. O olhar era o mesmo de antes, e se sentia novamente frustrado por sua fraqueza. Seguiu firme, entretanto, como se. A cabeça alta, os músculos tesos. Ao chegar no altar ela partiu a seriedade com um estrondoso ataque de riso. Riu batendo as pulseiras em sons agudos. Riu batendo as mãos no colo, levantando areia. Riu de olhos bem abertos, desavença.
Os homens enfileirados no corredor despertaram do seu sono de treva, dançando maracatus muito antigos, brandindo o som da terra. A luminosidade tornou-se leitosa e branca, e ele, viu algo nascendo dentro de si. Algo crescendo, exponencial, espaçoso. Tentou tapar os olhos para que não saísse. Tentou fechar a garganta. Amparou as pernas bambas num último esforço. E algo lhe escapou pela boca. O soluço que deu tão alto distraindo todos do algo de tudo. Abriu as mãos envergonhado e viu um peixe vivo. Azul quase verde, louco como o inferno, convulso.
Sua contumaz estupidez, no entanto, não o cegou para a sabedoria daquele momento. Abaixou a cabeça para mulher, não por ser fraco, mas por sua força ser outra, e entregou o peixe a ela. Ela abraçou o menino que não era homem, e deixou todas as lágrimas dele correrem por seus seios, repetindo num mantra infindável "se a corrente te levar, solte o corpo, e venha me encontrar".


2 comentários:

Luciana Ponce disse...

isso parece uma grande metáfora do meu ontem. senti. me senti revivendo quando li isso. chorei.

Ana Roman disse...

as vezes quando entro no blog tenho a sensação que na verdade estou voltando para casa, acendendo as luzes, colocando a bolsa na cadeira... aí te vejo no sofá, falando que essa casa é um pouco sua também.
é bom.
embora as vezes preocupe a intensidade dos temas.