sábado, julho 10, 2010

furgão

Foi numa madrugada exatamente como essa. A cumplicidade calma e inocente dos móveis do quarto. O lustre aquecendo sutilmente os livros dispostos na escrivaninha, sussurrando em seu ouvido palavras desconexas, pequenas histórias, teias indecisas para compor seus sonhos.
Quando eles vieram tudo estava exatamente assim. Todas as coisas do quarto olhavam para ela, carinhosamente, criando no ar parado que a ligava à luz, aos livros, aos objetos aleatórios, uma quentura leve de ninho.
O primeiro que chegou foi a dor. A pegou pelos rins e pediu seus segredos. Ela ficou de joelhos e disse que não. Que nunca se renderia aquele regime de palavras duras. O homem mal-vestido e suado continuou a amparando pelos quadris. A elevou no quarto, girando, absurda. Ela resistiu.
Então entrou no quarto disperso o enjôo. Ele deu um soco na boca do seu estômago e ela lançou seus despojos no lixo, que paralisado enchia-se de compaixão.
Ela continuou dizendo que não. Aliando-se à uma tradição antiga de mulheres que sempre suportaram a dor em silêncio.
Quando por fim amanheceu ela se rendeu. Os títeres a colocaram no pequeno furgão azul e a levaram para interrogatório.
Dessa vez, entretanto, a dor se tornou mais fácil de suportar. O ódio que tinha alimentava uma coragem ancestral, tornando-a insensível e perseverante.
A nocautearam e ela acordou semi-nua sem reconhecer o próprio corpo.
Voltou para casa depois de uns dias, rindo de suas marcas por mera gratidão.
Duas semanas se passaram e não há sinal algum dos homens.
Agora quem a atormenta é uma mulher.
Insônia,
acordando em seu corpo as marcas,
na retina antigas visões.

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